30 de abril de 2014

Natal do meu tempo de menina (memórias) Nati Cortez



Maria Natividade Cortez Gomes (Nati Cortez), cujo nome de solteira era Maria Natividade da Silva, nasceu em Natal em 1914 e hoje é considerada a pioneira na literatura infantil do Rio Grande do Norte, quiçá do Nordeste. A professora Sonia Othon, potiguar, da UFRN e diretora do Museu Câmara Cascudo, foi a autora da assertiva sobre o seu pioneirismo no RN. Nati Cortez escreveu peças teatrais para crianças e adultos, enfocando temas relacionados a ufologia e a vida de Natal nos anos 20/30/40 do século passado. Reprodução de foto (sem data) enviada por João Maria Cortez G. de Melo .


Antigamente a vida em natal era mais agradável. Do começo deste século até certa época, a existência dos seus habitantes transcorria mais alegre, mais serena, mais feliz.
Ah! Tempos saudosos aqueles!
A infância, quadra risonha da vida, época em que a criatura a desfruta sem preocupações e tristeza, decorria num ambiente sadio, livre dos perigos de hoje, onde a qualquer passo se depara com esta avalanche de costumes perniciosos, quais sejam, revistas perniciosas, rádio e cinema inconvenientes.
Quantas brincadeiras inocentes, quantos divertimentos inofensivos!
Aos domingos, a garotada reunia-se para subir no pau de sebo (um atrativo a mais, sadio, para as crianças). Só se via gente subindo e descendo, ate que um mais felizardo conseguia triunfar na peleja. Agora tudo mudou. As crianças, sabidíssimas, brincam de caubói e só falam em cinema. Na Noite de Natal, era célebre a lapinha na casa de D.Vicencinha Lucas, Rua Silva Jardim,Ribeira. Tomei parte muitas vezes neste folguedo tradicional. Os ensaios da lapinha constituíam-se em verdadeiros centros de atração popular. O “ensaio geral” era uma verdadeira festa. À residência de D. Vicencinha ficava repleta de pessoas das mais diversas classes sociais.
A torcida era renhindíssima. Os vivos dos adeptos do “cordão azul” eram estridentes, como também os do encarnado. As pastoras caprichavam para bem desempenhar os seus respectivos papéis. No dia da queima da lapinha, a azáfama era um fato. Sendo a última noite de brincadeiras e, consequentemente, a da vitória de um dos partidos, todos, participantes e assistentes, se esforçavam em fazer triunfar as cores de suas preferências. O entusiasmo atingia o auge quando as ciganas penetravam no trabalho. elas entravam cantando assim:
Somos ciganas do Egito,
Que viemos a Belém,
Adorar o Sumo Bem, (bis)
Me dêem uma esmola,
Pelo amor de Deus,
Que a pobre cigana,
“Hoje não comeu”. (bis)

As moedas e cédulas choviam nas sacolas das ciganas.

CAPITULO I

- O touro passa!
- Não passa!
- E se passar!
- Tem cavalo pra correr e dinheiro para gastar.
Assim principiavam as brincadeiras do nosso tempo de menina. Tempos saudosos aqueles!
A infância, época em que a criatura mais desfruta a vida, decorria num ambiente alegre e sadio. Quantos folguedos infantis! Naquelas noites calmas e enluaradas, as crianças reuniam-se para brincar de roda. Brincava-se de "cabra cega", de "remandinho-remandinho", de "bom barquinho", de "mãe" e de outras brincadeiras. As cantigas de roda eram as mais variadas possíveis.
"Ciranda,bcirandinha,
Vamos todas cirandar,
Vamos dar a
meia volta,
Volta e meia vamos dar.
O anel que tu me deste,
Era fraco, se quebrou
,
O amor que tu me tinhas,
Era pouco, se acabou".
Ou então:
   Senhora D. viúva,
Com quem você quer casar, quer casar?
Se é com o filho do rei, ou com o senhor general, general!
Eu não, não quero esses homens,
Que não nasceram para mim, para mim!
Sou uma pobre
viúva,
Ai triste, coitada de mim,
Ai de mim!

Também brincavam-se de La Condessa. Uma das meninas, a que representava a mãe, asenhora La Condessa, sentava-se no chão. No seu colo, sentava-se outra menina, a filha mais nova da Condessa, a caçula. As demais sentavam-se no colo das outras,sucessivamente. Eram as filhas mais velhas. Apareciam duas meninas cantando:

 Ô de casa,Ô de fora,
 Onde mora a La Condessa?
   A "mãe" respondia:
Que quereis com a La Condessa,
Que por ela perguntais?
Mandou dizer Rei meu Senhor,
Que das filhas que tivestes,
Que mandasse uma delas,
Para El Rei casar com ela.
Eu não dou as minhas filhas,
No estado em que elas estão,
Nem por ouro, nem por prata,
Nem por sangue de Aragão.
Tão contentes que viemos,
E tão tristes que voltamos,
A filha de La Condessa,
Afinal
, não a levamos.
Volta cá, bom cavalheiro,
Escolhei qual vós quereis!

A menina aproximava-se, colocava a mão na cabeça das filhas da La Condessa, da mais nova à mais velha na ordem da fila alinhada ali no chão aos pés da "mãe".
Esta fede, esta cheira,
Esta é à flor da laranjeira,
Esta aqui é que me serve,
Para ser minha companheira
.

Iam assim escolhendo a futura "rainha do Aragão". Isto repetia-se diversas vezes até que chegava a vez da caçula. A brincadeira atingira o seu clímax!
La Condessa não deixava que lhe tirassem a filha. Agarrava-se a esta com unhas e dentes. A algazarra nesse momento era enorme. As outras meninas vinham arrancar a "caçula" dos braços da "mãe". Faziam-se cócegas, cutucavam-na, etc.
Quem mais sofria era a caçula, coitadinha ...sufocada no aperto dos braços da menina que lhe servia de "mãe". Terminava com a vitória da maioria.
Incontáveis são os folguedos daquele tempo. Impossível enumerá-los. Às vezes, brincava-se de "prenda".
"Se a minha venta fosse um gaúcho o que era quer você botava?" Também de "berlinda". Uma das meninas ia para a "berlinda", enquanto outra saía perguntando porque fulana estava na "berlinda". As respostas eram verdadeiros disparates. A "berlindense" entãoescolhia a resposta que mais lhe agradasse. Então, a dona da resposta ia para a "berlinda".
As cantigas de roda tinham um repertório
inesgotável. "A barca virou", "Mande ou tiro, eu tiro Ia, dó, ré, mi, fá, fá, fá .. ". A gente cantava no meio da rua. Naquele tempo não havia o perigo de sermos atropelados por carros. Eram poucos, contados, os carros daquela época.
Por isso, sem receio, as meninas cantavam em plena rua:
"A barca virou,
E deixou de virar,
Por causa de fulana,
Que não soube remar
.
Ou então:
Minha mãe é muito rica,
Tem dinheiro pra gastar,
Quando eu peço um "cruzado".
Ela começa a falar.
         Dó, ré, mi, fá, fá, fá...
         Dó, ré, mi, fá, fá, fá...

Ah, feliz tempo aquele! Calmo, sossegado, sem as ameaças de guerras e calamidades
pairando sobre as nossas cabeças.
A paz era uma realidade. Tudo barato, sem a carestia dos dias de hoje, a vida transcorria serena e feliz.
A quietude da cidade, a o bucolismo das suas ruas....Aos domingos, a garotada reunia-se para subir no "pau de sebo", quebrar o "gato no pote".
A Esplanada Silva Jardim e a Travessa do Triunfo eram os locais favoritos para essa espécie de brincadeira.
Na Silva Jardim, porque lá existiam umas amendoeiras frondosas, que davam sombras acolhedoras, onde as crianças brincavam e se deliciavam com os seus frutos. Esses frutos possuíam, além da polpa gostosa e doce, o respectivo caroço que, quebrado, fornecia uma amêndoa saborosa. As crianças daquele tempo chamavam-nas simplesmente de "pé de
amêndoa doce"
. Ainda hoje existe na Esplanada Silva Jardim uma dessas árvores
memoráveis. Ár
vores como essas, não se deviam derrubar, mas, uma vez derrubadas, ficam sempre gravadas na lembrança dos que à sua sombra hospitaleira gozaram as aragens inebriantes das distantes tardes potiguares.
Na Esplanada Silva Jardim, o finado Sr. Antônio Cabral trabalhava na sua manufatura de cordões, de fios para a pesca, trançados à mão. A gente passava horas inteiras observando aqueles trabalho interessante. O terreno nesse ponto era coberto de "sedinhas". No meio dessas plantas, a meninada gostava de brincar de "esconde-esconde" , e, quando a brincadeira estava animada, um gaiato gritava: "Olha a alma de Brito!".
Era um Deus nos acuda. Corria menino pra todos os lados. (Brito era um rapaz que se suicidou naquele local).
A garotada também gostava de apreciar as idas e vindas dos "troley" que circulavam nas imediações. A Estrada de Ferro era ali perto. Às vezes, os meninos pegavam "morcegos"nos "troley". Tudo para nós constituía motivo de atração e novidades.
Por ocasião dos festejos sanjuanescos, costumavam as meninas se reunir na casa da minha finada madrinha Umbelina Gonçalves, para brincarem de "Capelinha de Melão".
Todas se enfeitavam com coroas de flores silvestres. Dadas as mãos, faziam um círculo,cantando e dançando com requebros e meneios nos corpos. Recordo-me apenas de unsv ersinhos:
Capelinha de melão,
É de São João,
É de cravo, é de rosa,
É de manjer
icão.
São João foi tomar banho,
Com vinte e cinco donzelas,
As donzelas caíram n'água,
São João caiu com elas.
Capelinha de melão ... (bis)

A casa de madrinha Umbelina Gonçalves constituía um verdadeiro centro de atração para as meninas de nossa rua. Nos aniversários de Luiz de Germano, seus sobrinhos, criados por ela com dedicação e amor, sempre havia na casa uma série de divertimentos. Às vezes,representava-se dramas teatrais. Madrinha Umbelina morava em companhia da irmã, Dona Chiquinha, sua colaboradora em tudo!
Lilita (Luiza) era de madrinha Umbelina, Maninho (Germano) de D. Chiquinha.
Dona Chiquinha fazia muito bolo gostoso, cocadas, o saboroso aluá que os dias de festas era grandemente elogiado. A residência delas, bem vasta, duas casas conjugadas, hospedava até Companhias de Teatro e de Circo. Por lá, hospedaram-se antigos artistas, conhecidos cômicos, inapagáveis palhaços. Recordo-me muito bem de seu Azevedo e do Mestre Stringuine. O que eu não gostava era dos tais ensaios. Coitadinhas das crianças, como sofriam!
Assisti muitas vezes as meninas dos circos aprenderem a "deslocar". Particularmente, lembro-me de Pupu (era de nossa idade). Parece que estou vendo!
Numa das salas da casa, traziam a Pupu para o seu aprendizado. A menina tinha que ficar no espaço determinado pelo mestre, não podia passar um milímetro sequer daquele ponto. Quando Pupu errava, tome chicotada! Chicote, no duro! As lágrimas caíam dos olhos da menina e da gente também, que não podia suportar tamanho quadro. Eu e Lilita não
podíamos fazer nada
. Parece que era o próprio pai que chicoteava a garotinha como se ela
fosse um animal, uma besta de carga. Que horror! Como sofríamos presenciando o cruel sofrimento da menina!
Agora, transcorridos tantos anos, ainda recordo as dores de Pupu, chorando, sem a gente poder acudir ... Às vezes, no quintal da casa de madrinha, brincava-se de circo.
(talvez sob influência do meio). Armavam-se autênticos trapézios, barras e outras coisas mais. Estendiam-se tapetes para o desfile dos artistas. Apareciam, então, os acrobatas, trapezistas, palhaços e os artistas da "pantomima". Na noite da função, a casa, o quintal e as adjacências, ficavam repletas. Um autêntico espetáculo.
No quintal da casa, dava gosto ver um jardim tratado por dona Chiquinha. Ali se viam flores dos mais variados matizes. Foi o maior jardim que eu já vi em minha vida e,nosfundos da residência, rosas de toda qualidade lá estavam enfileiradas. Ainda lembro-me deuma rosa que chamavam de Palmeirão. Anos depois descobri que o seu verdadeiro nome era Paul Neron, nome de um botânico francês.
Pelo Natal, era célebre a lapinha na casa de d. Vicência Lucas, também na Esplanada SilvaJardim. Nesse folguedo tradicional muitas vezes tomei parte. Os ensaios, um motivo de atração para os partidários dos cordões azul e encarnado.
O ensaio geral, uma autêntica festa popular. A casa ficava cheia de gente. A torcida eraestridente.

Viva o cordão azul!
Viva o cordão encarnado!
  Azul ...azul... azul...
  Encarnado      encarnado ...encarnado...

Cada pessoa desejava a vitória do seu cordão preferido. As pastorinhas caprichavam para bem desempenhar. D. Vicencinha, uma autêntica mestra de lapinha, esmerava-se em ensinar as meninas. Ela mesma dançava, naquela cadência, para as meninas observarem e assim aprenderem melhor, com mais rapidez.
No dia da queima da lapinha, a animação atingia o auge. Sendo a última noite da brincadeira, portanto, o da vitória de um dos cordões, a assistência aclamava delirantemente a cor da sua preferência.
  Azul ...azul ... azul ...
  Encarnado      encarnado ...encarnado ...
O ponto culminante era à entrada das ciganas. As meninas entravam no palco cantando:
Somos ciganos do Egito, Que viemos a Belém, Adorar o Deus menino (bis)
Adorar o Sumo Bem.
Me dêem uma esmola, Pelo amor de Deus, Que a pobre cigana,
Ainda hoje não comeu (bis)
O entusiasmo atingia as raias. Os vivas eram "roxos". Os níqueis choviam nas sacolas das Ciganas.
Por fim, a venda dos ramalhetes,

Transcrito e digitado com base nos originais encontrados até a presente data, 07.03.2001, por Luiz Gonzaga Cortez Gomes de Melo, filho da autora, que considera que parte do livro está extraviado. Dona Nati Cortez escreveu ”Natal de minha vida de menina” a partir de 1960. Cortez afirma que, apesar das intensas buscas nas coisas deixadas pela mãe, somente achou 8 paginas datilografadas e 4 manuscritas, mas acredita que alguém ficou com o restante do texto.
Recentemente, Cortez encontrou um pequeno texto com o título “Natal, vista por Nati Cortez”. Diz o seguinte:
Natal,
Terra querida,
Minha querida,
Terra Natal.

Nasci nesta cidade que não troco por nenhuma cidade deste mundo. Cresci escutando o sussurro das águas do rio potengi, onde nas margens fica a Pedra do Rosário.
“onde esta imagem parar
Desgraça não haverá”
Assim tem sido. Nossa Senhora da Apresentação, padroeira da cidade, sempre livrou Natal dos seus inimigos visíveis e invisíveis.
Me criei na Ribeira, onde logo cedo aprendi a ler no externato do sagrado coração de Jesus, da professora  Maria Emilia Andrade, de saudosa memória.
Ribeira de felizes recordações.
A igreja do Bom Jesus das Dores com os padres da Sagrada Família.
Lá, fiz a minha primeira comunhão. Nunca esqueci dois padres santos:

E das catequistas Delmira Gondim, Leonor Freire, Maria Augusta e Marta Barreto.

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