Anchieta Fernandes
Quando o filósofo francês Teilhard de Chardin falou em “cefalização” no
processo da evolução humana, estava querendo se referir à consciência no
contexto da evolução da espécie. Neste processo chega-se ao sistema específico:
a Língua. Na definição dicionarpistica, sistema no contexto linguístico é um
conjunto de elementos linguísticos solidários entre si, ou, como um todo, a
própria Língua encarada sob o aspecto estrutural.
Álvaro de Sá, em sua
“Teoria Geral das Linguagens”, historia a passagem da expressão/fala à
expressão escrita. Roland Barthes ensinou sobre o papel da Língua e Fala: cada
um destes dois termos só tira evidentemente sua definição plena do processo
dialético que une um ao outro. A Língua existe como tecnologia de comunicação.
Toda tecnologia, embora possa nascer simplesmente de uma prática, resulta em
suporte teórico.
Poder-se-ia implementar o suporte teórico da tecnologia de comunicação
chamada Língua, investigando as permanências e as variações dos seus padrões.
Uma língua não tem um padrão único. Suas variações ocorrem por diversos
motivos, podendo-se mencionar: a) transformações históricas na ortografia,
modificadoras da escrita (por exemplo, a palavra igual antigamente era escrita com e inicial e não com i);
b) peculiaridades dialetais.
Além do mais, poder-se-ia mencionar também os empréstimos vindos de
outras línguas via comércio e indústria (por exemplo: é comum se pedir: “me dê
uma Brahma”, em vez de “me dê uma garrafa de cerveja da marca Brahma” – porque
a palavra “Brahma” já foi incorporada ao falar cotidiano). E também gírias
decorrentes de certos grupos sociais. Paulino Vandresen, estudioso de
socio-linguística, escreveu o seguinte em artigo para a revista “Vozes”:
“Partindo da premissa de que tanto a linguagem como a sociedade são
estruturas e não mera soma de itens, a tarefa da sociolinguística será mostrar
a covariação entre a estrutura linguística e a social. Algumas das dimensões
pesquisadas serão: a) a existência de dialetos sociais ou a correlação entre certos
comportamentos linguísticos e a classe social do falante; b) as normas
linguísticas que são adotadas nos contatos linguísticos entre falantes de
classes sociais.”
Vandresen ainda falou sobre modificações de registro determinadas pela
classe social do interlocutor, mudança de código em áreas bilingues etc. Muitas
vezes as mudanças de registro, de código, ou de outros fatores linguísticos
estão associadas ao assunto ou a determinadas atividades ou ocasiões sociais.
Uma abordagem também interessante é o estudo comparativo entre o padrão
linguístico real e o ideal; Na aculturação linguística de imigrantes, por
exemplo.
Falando com terminologia mais simples, o historiador Chico Alencar
interpretou o aspecto socio-histórico da fala do povo: “A História está
presente até na maneira da gente falar o português. As crianças, as
amas-de-leite e os velhos escravos do tempo da Colônia e do Império fizeram
como as cozinheiras das casas-grandes: tiraram das palavras os espinhos e os
ossos. Só ficaram as sílabas moles, gostosas e fáceis de dizer. Antônio virou
Totonho ou Tunin. Tereza, Tetê. Francisco ficou Chico.”
E o
historiador continuou desenvolvendo o seu raciocínio, mostrando que as gírias e
simplificações foram ganhando espaço na língua do povo. Foram surgindo dois
modos de falar no Brasil. Um era o linguajar dos negros escravizados e
libertos, dos mestiços e dos brancos pobres, e também dos filhos do senhor, das
sinhás e das sinhazinhas. Outro modo de falar era o das autoridades, dos
governadores-gerais, dos donos de gado e gente mais letrada. Dos que
desempenhavam o papel de mandar.
Pelos exemplos dados, volta-se às teorias sobre a dialética na prática
de língua e fala. Não há língua sem fala e não há fala fora da língua. Às vezes,
o povo impõe um jeito de falar palavras que, se escritas é com grande ou
pequena modificação visual. Como Luiz Gonzaga exemplificou no baião “ABC do
Sertão”, as crianças sertanejas tendiam a fechar com circunflexo a pronùncia do
nome das letras: “O eme é mê, e o ene é nê,/o efe é fê/Na escola é
engraçado/ouvir-se tanto ê”. O cantor poetisou a fala pura do sertão
nordestino.
Dentro destes parâmetros de observação dos relacionamentos entre fala e
língua, importante que se destaque a contribuição potiguar no enriquecimento da
fala do povo. Nos anos 30 do século passado, o professor norte-riograndense
Clementino Câmara escreveu um dicionário da gíria, intitulando-o “Geringonça do
Nordeste”. Fatores de ordem moral, política e religiosa fizeram com que o livro
fosse censurado, na época, não tendo sido permitida a sua publicação, que o
autor havia solicitado ao governador.
Como Verailton Alves registrou, em reportagem cultural neste suplemento,
em agosto de 2010, o livro foi resgatado pelo escritor, jornalista e ex-reitor
da UFRN, Geraldo Queiroz, incluindo-o integralmente em sua tese de mestrado em
Educação, intitulada “Geringonça do Nordeste, A Fala Proibida do Povo”, que foi
publicada em forma de livro em 1989 (Clima), e, em segunda edição, em 2009
(editora da UFRN). Dentre os diversos verbetes, palavras e expressões
linguísticas captadas por Clementino, algumas são bem interessantes.
Por
exemplo: o arcaísmo “cadê”, derivado da locução “Que é feito de...”. “Coca”,
que é uma dupla spincope e apócope de “Cócoras” (“quem é aquele que está ali de
coca?”. “Corno”, epíteto dado ao homem cuja mulher é infiel. “Danisco”,
diminutivo de “danado”.”Deus lhe fale n’alma”, expressão que acompanha o nome
de algum morto. Ex: “O compadre Zé Fidélis, Deus lhe fale n’alma, foi dono
deste sítio.”. “Estrovenga”, palavra empregada para designar tudo quanto parece
incompreensível. “Eu ele”. Elipse da expressão “se eu fosse ele”.
Comentando, a 27 de abril de 1940, em sua coluna “Acta Diurna”, no
jornal “A República, o livro “Várzea do Assu”, de Manuel Rodrigues de Melo,
Câmara Cascudo entusiasmou-se com o que chamou “vocabulário capitoso”, onde o
escritor varziano registrou vocábulos e expressões “que ouvimos, empregamos mas
não escrevemos, assombrados com a fauna extinta dos gliptodontes gramaticais”.
Tão antigas, tão desusadas pelos contemporâneos de então, e só preservadas
pelos habitantes da Várzea do Assu, palavras como “fiota”, “taipero” etc.
Em outro livro seu,
“Cavalo de páu”, Manuel Rodrigues de Melo, a partir do famoso brinquedo das
crianças nordestinas “registra em suas páginas um mundo etnográfico e
sociológico que não mais existe e está presente somente na memória dos mais antigos
e nas páginas de obras como esta”(v. Woden Madruga, orelha da 2ª edição,
fac-similar, de “Cavalo de páu”, 2002). Neste mundo etnográfico, a riqueza do
vocabulário antigo que Rodrigues de Melo cita.
Dentre as
palavras e expressões mais interessantes as seguintes: “Apois”, figura de
metaplasmo, usando prótese, querendo dizer “Pois”. “Chô!”, interjeição para
espantar ou tanger galinhas. “Não sei que diga”, expressão muito usada no
interior, empregada com a significação de “semvergonha”, “diabo” etc. Visa de
preferência os meninos traquinas. “Qui...qui”, interjeição com a qual se chama
o cachorro. E para excitá-lo, assanhá-lo, usava-se (talvez ainda se use) a
interjeição “Úla-Úla!”.
Enfim, falando espontaneamente, nosso povo contribue para novos
parâmetros do escrever linguístico, do fazer novos signos. Signo (de etimologia latina: signu=sinal), em linguística, no
sentido saussuriano, é a entidade constituída pela combinação de um conceito,
denominado significado, e uma imagem
acústica, denominada significante
(observe-se, aliás, que os primeiros balbucios das crianças são ima formação
linguística, embora sem significados, contendo apens significantes.
Tudo resulta na constatação de que a signicidade é um fato social e não
originalmente natural, porque apenas a convenção social é que atribui tal ou
qual significação a determinada reunião de sons. Os índios Xicrim, do Pará,
emitem durante o conselho da tribo, gritos estridentes, querendo dizerem
“fúria”, “combatividade”. São emitidos principalmente por óndios que foram
derrubadores de ninhos de marimbondos. Estes gritos são chamados
“amiu-ã-bem-diri”, signos ecoantes, não prosódicos”
_______________________________
“O eme é mê/e o ene é nê/ o efe é fê/na escola é engraçado/ouvir-se
tanto ê”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário